Keywords: Guiné-Bissau; Iran; Guerra; Kyangyang; Antropologia das imagens
Participation: Presential
Esta apresentação consiste numa montagem de um excerto de 20 minutos do filme Fogo no Lodo no qual tenho vindo a trabalhar em coautoria com Catarina Laranjeiro desde 2016. Este projeto começou por incidir principalmente sobre a relação entre os habitantes de uma aldeia do sul da Guiné-Bissau, Unal, e os seus Irans durante a guerra de 1963-74 que opôs os que procuravam a libertação da Guiné- Bissau e os que se queriam manter sob o domínio colonial português. Os Irans são os seres invisíveis e imateriais descritos pelos Balantas como os verdadeiros donos da terra (outros povos da Guiné- Bissau, como por exemplo os Manjacos, também assim os consideram). Estes espíritos tanto regulam as relações entre humanos e não humanos, como também todos os assuntos relacionados com a divisão da propriedade, com o arbítrio de conflitos legais dentro da comunidade, com a organização das colheitas, dos recursos naturais, da gestão da floresta, com os casamentos e outros assuntos familiares. Durante a guerra de libertação, os pactos estabelecidos com os Irãs permitiram aos guerrilheiros criar a reputação de que podiam tornar-se imunes às balas inimigas em situação de combate. Essa convicção levou-os a lutar de forma intrépida conferindo a muitos desses homens uma reputação de invencibilidade que persistiu muito para além da guerra. Mas, se por um lado foi a relação com os Irans que motivou esses guerrilheiros para a guerra é também essa relação que hoje muitos descrevem como de sujeição. Ou seja, para que a paz e a ordem prevaleçam na comunidade, é preciso continuar a alimentar os Irans com sacrifícios de animais. O que para muitos é economicamente incomportável pois matar um animal é demasiado caro e o Iran precisa de muitos animais para se saciar. Como dizia um dos nossos interlocutores: “Tens que dar sangue ao Iran. Se não lhe dás sangue de animais, é o teu sangue que ele vai querer!”
Ao longo do nosso processo fílmico fomos percebendo que esses espíritos, os Irans, fazem no fundo parte de uma vasta cultura imagética que inclui múltiplas imagens religiosas, bem como múltiplas imagens da experiência da guerra colonial e da política a ela associada. Estas imagens são provenientes tanto da religião tradicional dos Balantas como das religiões monoteístas cristãs (tanto católicas como, mais recentemente, evangélicas) e muçulmanas (maioritariamente Sufi Tijaniia) que ao longo da história foram penetrando a religiosidade dos Balantas. Não só os Irans fazem parte dessa ecologia de imagens como existem vários indícios que nos levam a pensá-los como uma mescla de imagens oriundas de várias tradições religiosas. Esta mescla leva-nos também a pensar a imagem do Iran como um repositório de imagens oriundas de várias fontes que acaba por constituir uma espécie de arquivo contra-hegemónico que, paradoxalmente a uma escala local, acaba também por ser hegemónico e objeto de novas respostas contra-hegemónicas como o Kyangyang que é um movimento de cura religiosa surgido em meados dos anos 1980 no seio da comunidade Balanta cujo intuito é precisamente destruir o culto ao Iran.
Catarina Laranjeiro, 1983. Investigadora do Instituto de História
Contemporânea FSCH-Nova, onde desenvolve uma investigação sobre
cinema vernacular em Cabo Verde e Guiné-Bissau e respectivas
diásporas em Portugal e França. É doutora em Pós-Colonialismos e
Cidadania Global pela Centro de Estudos Sociais da Universidade de
Coimbra, tendo na sua dissertação se debruçado sobre o papel do
cinema e da cosmologia política no decorrer da Luta de Libertação
guineense. Participa, regularmente, em diversos projectos e
colectivos que cruzam a antropologia, a fotografia e o cinema.
Daniel Barroca (1976) estudou Artes Plásticas na Escola de Arte e
Design das Caldas da Rainha (1996/01), no Ar.Co em Lisboa (2002) e
no Ashkal Alwan em Beirute (2013/14). Foi artista residente na
Künstlerhaus Bethanien em Berlim (2008), na Rijksakademie van
Beeldende Kunsten em Amesterdão (2010/11) e no Drawing Center em
Nova Iorque (2015). O seu trabalho está representado nas coleções
da Fundação Calouste Gulbenkian, Rijksakademie van Beeldende
Kunsten, MAAT, MACE, Fundação Carmona e Costa e Fundação Botin. Em
2016 recebeu uma bolsa Fulbright que o levou ao departamento de
Antropologia da Universidade da Florida onde fez um mestrado em
Antropologia. Neste momento está a fazer um doutoramento em
Antropologia no DANT.ULISBOA com uma bolsa FCT, e a finalizar um
filme documental em coautoria com Catarina Laranjeiro, produzido
pela Kintop e apoiado pelo ICA, sobre guerra e religião numa
comunidade Balanta do Sul da Guiné-Bissau.