Cercanias. Que jardim há nessa fotografia?

Fabiana Bruce Silva


Keywords: fotografia; desbaste; cultura visual; estratégias de decolonização; contra-memória Participation: on-line

Participation: on-line

Proponho apresentar um álbum de fotografias, intitulado Cercanias. Que jardim há nessa fotografia? O álbum é resultado de pesquisa e intervenção feitas em meados de 2021, onde desbastei reproduções de cartes de visite. Estas foram feitas pelo fotógrafo português Manoel Tondella (1861-1921), em c. 1890. As imagens estão em Domínio Público na web e fazem parte do acervo da Fundação Joaquim Nabuco, no Recife – Nordeste do Brasil. São imagens visuais de mulheres e crianças fotografadas em studio, simulando jardins.

Observando a regularidade enfadonha dessas imagens, apossei-me delas e desviei meu olhar das figuras e de seus nomes, para fazer aparecer partes dos cenários - as cercas, em especial. Inicialmente por intuição, percebi as possibilidades em que foram aparecendo memórias e fantasmagorias; ao fazer sumir as pessoas associei tais gestos aos processos de apagamento, marcantes, da colonização. Considerei refletir esses fragmentos como partícipes dos processos de decolonização contemporâneos, procurando sintonizar com o debate das “narrativas e práticas visuais contra-culturais e as suas contribuições para ambientes socio culturais igualitários e sustentáveis” (Counter-Image 2022).

A palavra desbaste, como a usei, vem de desbastar: “des basto ar”. E significa “tornar menos basto, retirar, polir, tornar menos espesso”; expressão muito usada em processos de esculpir na madeira, na pedra, no linóleo; lapidar. Traduzida na experiência da feitura do álbum de fotografias - para rever - o desbaste é utilizado como ato de arejamento e emaranhamento, que ainda estou pensando; no sentido de afirmar a possibilidade de uma poética na abordagem do arquivo fotográfico. Chama atenção para o tratamento da fotografia em arquivos, acentuando que na contemporaneidade vivemos a ampla reprodutibilidade e que é interessante a narrativa historiadora dialogar também aí.

As intervenções vieram por inteiro e adquiriram corpo como álbum. Diante dessas imagens selecionei, copiei, colei e desbastei, fotografando novamente com uma ferramenta de computador, a “alfa instantâneo”. Ao eleger os restos das cercas, fazendo aparecer formas disformes e mesmo geometrias, considerei a ideia do emaranhamento – numa aproximação com os Cartemas (1972) de Aloísio Magalhaes (1927-1982). Mexida com a intensidade dessas imagens, confundindo as formas das cercas com as figuras senhoriais (gestos de cercar); mulheres e crianças, com as folhagens; como se fosse possível ouvir desses acontecimentos algumas palavras; de conformidade, de apelo, quem sabe, ainda hoje.

Passagens da historiografia e da teoria da fotografia no Brasil assinalam o uso de cercas nos cenários onde certas fotografias eram feitas. Tondella levava para o studio pedaços de madeira e pequenas partes da flora local. No período em que atuou, o Recife era cidade senhorial rural. No studio o cenário era montado com cercas de madeira, troncos de árvores de pequeno porte, folhagens misturadas a cadeiras, cortinas e paredes estucadas. Também flores e pequenas balaustradas, onde as pessoas pousavam suas mãos. As cercas eram usadas para que as crianças, ao serem fotografadas, se segurassem.

No percurso da pesquisa encontrei o trabalho da artista portuguesa Carla Cabanas, em especial I don’t trust myself when I’m sleeping (2018-2019); que também desbasta, mas não com este nome.


References


DIDI-HUBERMAN, Georges. Quando as imagens tocam o real. Pós: Belo Horizonte, v. 2, n. 4, p. 204 – 219, nov. 2012. Acesso on line:
CABANAS, Carla. I don’t trust myself when I’m sleeping. Paris Photo 2019 with Galeria Carlos Carvalho Arte Contemporânea, France. Acesso on line:
GAGNEBIN, Jeanne Marie. Apagar os rastros, recolher os restos. In: SEDLMAYER, Sabrina; GINZBURG, Jaime (Org.). Walter Benjamin: rastro, aura e história. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2012. p. 27-38.
LISSOVSKY, Mauricio. Guia prático das fotografias sem pressa. In: HEYNEMANN, Claudia Beatriz; RAINHO, Maria do Carmo Teixeira. Retratos Modernos. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2005.
VILELA, Eugenia. Do testemunho. Princípios. Revista de Filosofia. Natal (RN), v. 19, n. 31, janeiro/junho de 2012, p. 141-179. Acesso on line:


Bio


BRUCE SILVA, Fabiana. Historiadora e antropóloga. Com pós-doutorado no CRBC/EHESS, em Paris, França e na ECO/UFRJ, no Rio de Janeiro, Brasil. Leciona História Contemporânea II na Licenciatura em História da UFRPE, no Recife, Brasil, onde é professora associada. Tem experiência em pesquisa ensino de História, atuando nos seguintes temas: história da fotografia, história e imagem, cidades, memória e patrimônio histórico, história oral, história e cultura visual, história publica e estética.


BACK
^